Pular para o conteúdo principal

dramas utopianos



thomas more, visconde de londres? sem chance. vou de subxerife ou de juiz [de primeira instância].

mas veja-se o problema: xerife, sheriff, naquela época na inglaterra (século 16) era tipo um funcionário público nomeado pelo rei para cuidar de determinada jurisdição, basicamente para questões judiciais e manutenção da ordem e segurança pública (acho que seria mais ou menos o que hoje chamaríamos de secretário da justiça ou da segurança pública, algo meio por aí, mas um pouco mais abrangente).

o xerife tinha lá seus ajudantes diretos, não sei quantos - devia depender do tamanho da cidade, claro - que eram os subxerifes, undersheriffs, que atuavam nos tribunais daquela jurisdição como representantes legais do xerife.

thomas more (que era advogado, e bom advogado, desde jovem) a certa altura da vida foi nomeado para essa função de undersheriff. mas aí, numa longa história que agora não vem ao caso, uns anos depois ele foi escolhido para acompanhar um cara importante (o segundo na hierarquia do judiciário, só abaixo do presidente do supremo tribunal da época; master of the rolls, como era chamado) numa missão diplomática nuns entreveros que tinham surgido com os países baixos e é aí que ele vai para flandres - e é lá que ele escreve a utopia, ou grande parte dela.

mas, como se sabe, more escreveu a utopia em neolatim, não em inglês - e em neolatim ele se apresenta como vicecomitem. (pois claro; sheriff, que vem de shire reeve, algo como "bailio do condado" - mas não posso usar bailio por outras questões -, era um termo anglo-saxão; e more buscou um termo latino que "ressignificou", como dizem hoje em dia, para fazer caber o sentido do bendito termo e cargo anglo-saxão).

visconde (ou, em francês, vicomte) naquela época nem existia na inglaterra, ou mal acabava de ser criado o título, poucas décadas antes e sem essas atribuições próprias do sheriff, enquanto que, na tradição do império carolíngio, o "visconde", mesmo que ainda não fosse um título nobiliárquico hereditário, já existia, porém designando outro tipo de função que não a de um sub-bailio ou de um subxerife. o visconde nosso ou o vicomte francês era de fato um vice-conde, um auxiliar do conde local, nada a ver especificamente com law and order, e sim mais com a administração das terras e dos interesses do senhor do condado, o conde, justamente.

além disso, para nós, leitores médios, visconde parece sempre um título de nobreza, mesmo que bem lá no início, na frança, não fosse.

por outro lado, quanto a xerife a gente sempre pensa naqueles xerifes de filme de faroeste ou em xerife americano, tipo nosso delegado de polícia (se bem que o xerife americano ainda está muito mais próximo de um antigo sheriff inglês do que de um viscount ou de um visconde, seja em francês ou em português).

e under-sheriff a gente pensa que podem ser os ajudantes vice-xerifinhos que substituem o xerife quando ele saí, mas não; é seu representante no tribunal quando a ação fica ali restrita àquela jurisdição, tipo, sei lá, primeira instância, meio também como uma espécie, imagino eu, de juiz de paz.

mas aí acontece que, na maioria esmagadora das várias traduções da utopia que temos no brasil (que, como vimos, são quase todas a partir do francês e do neolatim), temos thomas more como visconde. então acho graça ir a contrapelo da nobreza dos viscondes e retomar devidamente o more como sub-xerife ou juiz.

complementação: "in 1508 More himself was associated with one of the City’s under sheriffs, Richard Broke, as arbitrator in a dispute between two Londoners. ... On 3 Sept. 1510 More replaced Broke as under sheriff: for eight years he served as judge in the sheriff’s court of the Compter in the Poultry and acted as one of the City’s legal counsel", ou seja, juiz do condado, de primeira instância, para as causas daquela jurisdição, abrangendo também pequenas causas, arbitragem de conflitos locais etc.